Há já um bom tempo, vem-se procurando encontrar uma saída para os crescentes conflitos entre a Lei no6.404/76, no seu capítulo contábil, e as normas emitidas pelo CPC e aprovadas principalmente pela CVM e pelo CFC. E, como se não bastasse, também entre a contabilidade atual e a legislação tributária.

Quando veio a Lei das S/A em 1976, mudou-se drasticamente a horrível contabilidade praticada até então. A Lei das S/A deu um impulso notável à nossa contabilidade, que, à época, passou a estar entre as melhores do mundo. Foi a primeira grande revolução contábil no Brasil.[1] Mas, como toda a Lei, provoca enorme revolução e depois funciona como uma âncora maior do que o navio, e o navio não anda. Não se atualiza e começa a criar problemas (ainda mais quando o assunto é contabilidade!). Por exemplo, não podíamos reconhecer instrumentos financeiros a valor justo porque essa Lei determinava o uso do custo. Não tínhamos a conta de outros resultados abrangentes; subvenções para investimento e prêmio na emissão de debêntures não transitavam pelo resultado etc. etc.

Logo no ano seguinte (1977), veio o Decreto-Lei no 1.598/77 e mudou, de forma drástica, também…. a legislação fiscal. Ou seja, a legislação fiscal adaptou-se à contabilidade societária. Assim, quando contabilidade e legislação tributária novas entraram em vigência em 1978, tudo entre elas estava harmonizado. Tanto, que o cálculo do Lucro Real começa do resultado contábil conforme adotado pela própria Lei das S/A (art. 6º, § 1º, art. 67, inciso XI,  Decreto-Lei no  1.598/77). E o caminho adotado para lidar com as diferenças, pelo menos teoricamente, foi: mude-se a lei fiscal. Basta ver as disposições contidas no § 2º do art. 177 da Lei das S/A, bem como no § 2º do art. 8º do Decreto-Lei no 1.598/77, que preveem a manutenção de registros ou livros auxiliares (o LALUR/ECF é o principal) para lidar com tais diferenças. 

Devido a isso, a própria legislação tributária foi, diga-se de passagem, um dos principais fatores de disseminação do modelo societário introduzido pela Lei das S/A na prática contábil brasileira, pois, exigia-o para entidades tributadas pelo lucro real, mesmo que estas não fossem sociedades anônimas. Sem falar que, por exemplo, o Decreto Lei no  1.598/77 trouxe disposições sobre matérias pouco tratadas na Lei das S/A, como é o caso do método da equivalência patrimonial. 

Não obstante esse cenário legal de harmonização, tem-se que o próprio Decreto-Lei no 1.598/77 já previa que os ajustes no LALUR (adições, exclusões e compensações) para determinação do lucro tributável somente poderiam ser aqueles prescritos ou autorizados pela legislação tributária. De fato, ao longo do tempo, a legislação tributária foi definindo e moldando a prática contábil de acordo com os seus objetivos, em detrimento das normas contábeis, enquanto a Lei das S/A não dava poderes para ninguém ir além dela. E, assim, a bandeira da neutralidade “foi para o brejo” (ressuscitada só com as Leis no 11.638/07 e no11.941/09). 

Desse modo, a CVM só podia emitir normas desde que não contrariassem a Lei das S/A e/ou, na prática, não obrigassem a acréscimo de tributos. Mesmo assim conseguiu emitir muitas, algumas históricas relativas a: estrutura conceitual básica da contabilidade, reavaliações de ativos, moeda estrangeira, transações entre partes relacionadas, provisões e contingências, benefícios a empregados etc. O CFC, mesmo sem poder legal à época, trilhou um caminho bastante parecido.

Com isso, como as normas internacionais (e norte-americanas) evoluíam,  não podiam por esses motivos ser elas aqui todas adotadas. E o Brasil, que havia estado no grupo de elite da contabilidade mundial, foi-se distanciando, distanciando… e nasceram daí a necessidade e a ação para mudar a Lei. E essa mudança (Lei no 11.638/07), vigente a partir de 2008, provocou mudanças para harmonização com as normas internacionais e também iniciou o processo da neutralidade tributária. Finalmente.

Só que essa Lei, cujo projeto fora para o Congresso sete anos antes, foi tão corrida na sua reta final no Congresso que optou-se por não atualizar o projeto, já que durante esse tempo algumas inovações do IASB não estavam previstas e não saíram na Lei no 11.638. Assim, esta Lei já nasceu com novas contradições com as normas internacionais. Por exemplo: foi criada a conta de ajustes de avaliação patrimonial, para representar os outros resultados abrangentes, mas previa a total versão de seus valores para o resultado um dia; mas as normas internacionais já propugnavam por não se seguir esse caminho em algumas ocasiões. O imobilizado e os investimentos, pela lei, não podem ser avaliados ao valor justo, como no caso das propriedades para investimento. Ativos biológicos também não. Produtos biológicos, sim, estavam dentro da lei (sob o nome de mercadorias fungíveis). Alguns outros pontos: a Lei continuava, na demonstração do resultado, a obrigar à evidenciação da receita bruta, quando no IFRS começa-se pela receita líquida; a Lei mantém resultados operacionais e não operacionais, que os IFRS não aceitam (ainda). E outras coisas mais.

Mas a Lei deu poderes expressos à CVM para, dali para a frente, continuar a  emitir normas, só que agora apenas de acordo com as internacionais (art. 177, § 5º), no uso da atribuição já conferida originalmente pela Lei das S/A, no § 3º do seu art. 177. E o vem fazendo, cumprindo essa determinação, mas, não obstante esses comandos legais e a própria competência regulatória da CVM prevista no inciso IV do § 1º do art. 22 da Lei no 6.385/1976,  parece estranho para muitos, porque muitas dessas normas contradizem a própria Lei das S/A. Seria isso totalmente legal? Por exemplo, as propriedades para investimento e os ativos biológicos avaliados a valor justo, já comentados como não citados pela Lei; a classificação atual dos instrumentos financeiros diferente do que a dada por essa Lei (ela havia mantido a classificação da época mas o IFRS 9 mudou); não menção ao novo ativo direito de uso por aluguéis, arrendamentos etc. (a Lei determinou a ativação como imobilizado apenas do que à época se chamava arrendamento mercantil financeiro); conceito de valor justo divergente hoje ao do IASB; não menção de certos lançamentos sendo feitos no balanço individual por força das normas internacionais, como o ágio na aquisição de mais ações de minoritários; formas de reconhecimento como controlada ou como filial, ou de determinadas operações em conjunto; não difere demonstração individual de demonstração separada etc.

E agora vem a proposta do IASB de mudança na demonstração do resultado (principalmente) que simplesmente cria conflito praticamente total com o modelo da Lei (muito embora, pela intepretação literal do § 3º do art. 177 da Lei das S/A, tal conflito inexistira no âmbito da regulação da CVM). Ou seja, o volume de divergências hoje é muito grande, algo precisa ser feito antes que demandas jurídicas tragam problemas para todos. E ocorre que todas as regras legais relativas a dividendo obrigatório ou não, a valor patrimonial e outras estão baseadas totalmente no balanço individual, que é o totalmente regulado pela Lei. E é bom lembrar que o Conselho Federal de Contabilidade adquiriu poderes legais de normatizar a contabilidade das entidades não submetidas a órgãos reguladores que tenham expressa autorização legal para isso em 2010 (Lei no  12.249/10 que incluiu letra f ao art. 7º do Decreto-Lei no  9.295/46). Mas não tem delegação de poderes pela Lei das S/A como tem a CVM para emitir normas segundo as internacionais. É um belo imbróglio.

Temos que pensar em soluções

  1. Elimina-se toda a parte contábil da Lei das S/A e também do Código Civil que contém atrocidades contábeis várias, com a Lei apenas dando poderes ao CPC para a emissão dos pronunciamentos a serem referendados pela CVM, CFC, SUSEP, ANS, BANCO CENTRAL etc. (essas e outras agências fazem isso hoje, algumas não integralmente, principalmente o BACEN; curiosidade: sabem que foi o BACEN a primeira entidade no Brasil a adotar as IFRS para seus próprios balanços em 2006, antes da própria Lei no 11.638? Visite o site você mesmo(a))? Esse é o modelo dos EUA, da Inglaterra e outros, onde as normas são emitidas por um órgão próprio de direito privado, com representantes de preparadores, auditores, investidores, minoritários, credores, academia etc.)
  2. Produz-se outra reforma da Lei no 6.404/76 e espera-se mais alguns anos para de novo ficar obsoleta? Ou fazemos a reforma e convencemos o IASB a não mudar mais nada…?
  3. Deixa-se a Lei das S/A para empresas pequenas e até algumas médias, sem obrigatoriamente terem que seguir o Pronunciamento das Pequenas e Médias Empresas (PME) do IASB, mas com regulação doméstica do CFC? E esse pronunciamento só ficaria para “grandes médias”, aceitando-se para elas a letra acima?
  4. Etc. (estamos todos à caça de ideias brilhantes).

A busca de uma solução “ótima” requer conciliar inúmeros objetivos informacionais exigidos para a contabilidade. No Brasil, de acordo com dados disponibilizados pela Receita Federal (dados de 2018)[1], é possível estimar que temos em torno de 1,3 milhão de empresas (exceto ME e EPP), das quais, aproximadamente, 600 seriam companhias abertas.  Há realidades muito distintas e é preciso avaliar o cenário considerando os interesses dos principais afetados: entidades e usuários.

E apenas para mencionar, mas sem querer explorar e talvez voltando mais à frente a esse assunto: e a legislação fiscal, como fica? Quanto mais a contabilidade segue as IFRS, mais defasada fica a contabilidade pelas IFRS da legislação fiscal. E haja subcontas, espaço no LALUR, controles… E haja treinamento para o pessoal da Receita para se atualizar com as IFRS (se bem que acho isso muito bom). 

E daí, alguma solução?

  1. Muda-se fortemente a contabilidade tributária com alguns componentes tributários tirados da contabilidade e outros de documentos fiscais (notas fiscais p.e.), como é o projeto da RFB?
  2. Criamos duas contabilidades totalmente separadas?
  3. Aceitamos a letra c logo atrás na discussão anterior, com duas contabilidades separadas, uma pela Lei das S/A e outra pelas normas internacionais, mas cingindo estas a uma quantidade relativamente pequena de empresas, e daí bastaria uma elite da RFB para auditá-las?
  4. A RFB reduz significativamente o número de itens de não concordância para que voltemos ao que existia antes das IFRS? (Ajustes a valor presente, estoque como apurado pela contabilidade, receitas como as da contabilidade e algumas poucas outras?)
  5. Um pouco de cada uma dessas hipóteses?
  6. Etc. 

Bem, desculpem-me se falei de muitos problemas e não sugeri especificamente nenhuma solução. Mas acho que nosso dever também é esse: provocar mais discussões para que se caminhe para um consenso para ambos os problemas: conflitos Lei das S/A X Normas Internacionais e conflito Normas Internacionais X Legislação Tributária.

Vamos pensar e agir?


[1] Fomos o primeiro país não saxônico a adotar consolidação de balanços e equivalência patrimonial; fomos o segundo país do mundo a adotar a DOAR, hoje substituída pelo Fluxo de Caixa; implantou-se um entendimento bem severo para o regime de competência (até então era razoavelmente seguido, mas desde que não houvesse qualquer dispositivo em contrário – por exemplo, o imposto de renda era reconhecido contabilmente no ano seguinte, quando de seu pagamento, não quando do registro do correspondente lucro); separamos a Demonstração de Lucros e Perdas em duas: a do Resultado e a de Lucros/Perdas Acumulados (muitos não sabem que antes dessa Lei eram uma demonstração única, juntando-se numa demonstração de saldos devedores e credores,  igual ao balanço patrimonial, saldos anteriores, lucro bruto (não era evidenciada a receita de vendas), despesas, reversões de reservas, criação de reservas, distribuições do resultado, saldo para o ano seguinte etc. Impossível saber do lucro sem fazer contas. Impossível saber o lucro sem fazer uma porção de contas.

[1] Fonte: http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/estudos-diversos/dados-informacoes-e-graficos-setoriais-2009-a-2018

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