Goodwil, ou Ágio por Expectativa de Rentabilidade Futura, tem tido uma vida bem movimentada. Não pode reclamar de monotonia.

Até meados dos anos 2000 tinha talvez o tratamento mais desigual no mundo: no Brasil, como regra, amortizado em até 10 anos; nos EUA, em até 40 anos (dizem as más línguas que era a idade média dos componentes do comitê que fixou esse prazo…), na Alemanha em até 5 anos; o IASB falava em 10 podendo chegar em casos raros a 20. Tudo na maior arbitrariedade do ponto de vista científico.

Na Inglaterra não era amortizado, e sim jogado diretamente contra o patrimônio líquido, sob a alegação de que ele não é, realmente, um ativo (não pode ser vendido, não está sob efetivo controle etc.); lá era jogado diretamente contra o patrimônio líquido na sua aquisição, e sob uma razão simples: quem cria o goodwill lança tudo o que investiu para construí-lo (pessoal, tecnologia, marketing etc.) como despesa; porque haveria quem paga por ele na compra de um negócio tratá-lo como ativo? Se o adquirente o houvesse desenvolvido, também teria jogado tudo para despesa. Ou seja, tudo contra o patrimônio líquido, nunca como ativo.

Nos anos 2000 o IASB e o FASB mudaram de opinião (a Inglaterra também foi obrigada a isso – foi antes do Brexit). O FASB foi bem explícito. Disse que pesquisas realmente mostram que um goodwill raramente tem vida de 10 anos, cada vez é menor, diga-se de passagem, mas nunca sendo possível determiná-lo com aceitável precisão. Além do mais, pesquisas, inclusive acadêmicas, junto aos investidores nos EUA mostraram que eles simplesmente não davam “pelota” para a despesa dessa amortização no resultado. Alguns analistas até o baixavam integralmente do ativo para fins de suas análises (como no Brasil muitos baixavam o então Ativo Diferido – alguém se lembra?). E, para evitar arbitrariedade, decidiram que só seria baixado quando evidente que perde valor. E assim criaram o impairment do goodwill. E acabou-se a amortização sistemática do goodwill

Acabou nada, porque o próprio IASB determina sua amortização no documento de CPC para Pequenas e Médias Empresas por um prazo dado como razoável ou no máximo em 10 anos! Os USGAAP também fazem o mesmo para alguns tipos de sociedades fechadas. (E não vamos falar aqui em amortização fiscal, também uma completa disparidade no mundo, incluindo os países que não admitem, jamais, sua dedutibilidade a não ser na baixa do investimento – exatamente como era no DL 1598/77 no Brasil. Aqui só estamos cuidando dos efeitos contábeis.)

Só que a manutenção do goodwill no ativo incomoda muita gente, mais do que n elefantes. E por que isso? Primeiramente porque sua não amortização sistemática faz com que não se jogue essa despesa contra os lucros que se obtém do investimento a que se refere. Alguns consideram isso um descasamento contábil. Também tem sido provado que os impairments têm sido feitos apenas muito fortemente quando não mais impossível postergá-los e, às vezes, e isso é triste, até antes da hora por questão de se querer evitar distribuir dividendos (vai ver que isso é só má língua!). Ou seja, alvo de gerenciamento de resultados.

Mas um outro motivo vem ficando forte: como têm aumentado significativamente esses ativos nos balanços no mundo todo, a partir da velocidade cada vez maior com que empresas são negociadas, o custo do teste de  verificação do impairment vem também aumentando muito, sendo obrigatório pelo menos anualmente. E, de fato, esse teste custa mesmo muito dinheiro.

Juntando esses argumentos, e vários outros, eis-nos agora a ver a discussão, no mundo todo, da possibilidade da volta da amortização sistemática do goodwill (de qualquer forma isso não elimina a necessidade do teste de impairment, mas alivia e muito); o FASB discute, o IASB discute, nós discutimos no Brasil e é possível que as regras venham a mudar novamente.

Muitos consideram que a objetividade de uma amortização sistemática (??), mesmo que arbitrária, seria preferível a ficar-se com a dúvida sobre a efetiva atenção com os testes de imparidade. E que os lucros seriam medidos de forma melhor pela contraposição dessa despesa com os lucros gerados pelos investimentos que criam o goodwill.

Mas há pontos também contrários: amortizar o goodwill adquirido, mas lançar para despesa o que se gasta para criar outros ‘goodwis’ seria uma deformação contábil. Para isso é preciso lembrar que, como já dito, tudo o que uma empresa gasta para constituir o goodwill é obrigatoriamente despesa, nada podendo ser ativado. Mesmo que às vezes seja difícil separar gastos com o desenvolvimento de determinados outros intangíveis passíveis de ativação.

Além disso, se uma empresa paga goodwill na compra de outra, e consegue mantê-lo ao longo do tempo (na verdade iria substituindo a tecnologia, a validade do nome e reputação etc. ao longo do tempo: alguns perdendo a validade mas outros surgindo), sua amortização criaria uma despesa, com a redução do ativo, e na venda desse investimento geraria um lucro que nada mais seria do que a correção das despesas de amortização feitas no passado.

A não amortização também corresponde à soma de dois fatores, dizem outros: é como se ela estivesse sendo depreciada mas os novos gastos estivessem sendo ativados. E algo interessante ocorre: quando uma empresa adquire outra por conta de um produto extremamente lucrativo, paga o goodwill e ativa; esse produto deixa de ser lucrativo, é descontinuado, mas outro é criado, com sucesso, no seu lugar. Na verdade, o goodwill inicial nada tem a ver agora com o novo criado com o novo produto. Mas o inivcial está lá no balanço como se tivesse sido amortizado e as novas despesas com a formação do goodwillseguinte tivessem sido ativadas. Esquisito, não?

Outro ponto extremamente relevante: só se ativa o goodwill adquirido, jamais o criado pela própria empresa. Assim, ele só aparece nos balanços quando de combinações de negócios, jamais se a empresa nunca adquire negócio algum. E, quando aparece, nada tem a ver com o goodwill da adquirente, e sim com o da adquirida. Se houver consolidação, continuará representando o goodwill da adquirida que agora foi incorporada. E quando a incorporação faz desaparecerem os próprios ativos adquiridos?

Não é o caso de um grande laboratório que compra dez concorrentes e os fecha transferindo sua clientela para outros próprios já existentes? A que unidade geradora de caixa se refere agora o goodwillpago? Como fazer o impairment? Coitados dos usuários que olham o goodwill no ativo (cada vez por valores mais relevantes em determinadas empresas e em determinados segmentos econômicos) e não sabe muito bem disso tudo…

Ou seja, quanto mais se estuda o assunto, mais se percebe que há razões, e quilos delas, para essa confusão enorme sobre o que fazer com o Ágio Pago Por Expectativa de Rentabilidade Futura quando se adquire um negócio (lembrar que pode não ser compra de empresa, mas de parte dela, de um determinado conjunto de ativos e a tecnologia envolvida, por exemplo).

Eu mesmo não consigo ter uma visão cristalina sobre a matéria. Estou escrevendo esperando que alguém me ajude a clarificá-la! Por enquanto estou mais pela amortização do que pelo impairment. E talvez mais ainda pela baixa direta contra o patrimônio líquido. Ou se ativam os valores de todos os “goodwills” ou não se ativa nenhum (agora estou forçando). Lembremo-nos de que isso já vem acontecendo numa situação específica: se o controlador adquire mais ações de minoritários e paga ágio genuíno, precisa considerar a operação como transação entre partes relacionadas e tratar o goodwillpago igualmente à ação em tesouraria. Ou seja, reduzindo o patrimônio líquido!

Mas estejamos preparados porque seremos chamados a dar nossas opiniões quando os órgãos reguladores contábeis do Brasil, como o CFC, a CVM etc. e, bem antes disso, quando o IASB (e talvez o FASB) pedirem comentários sobre a mudança dessa política contábil. Pensemos, opinemos ou não reclamemos das mudanças se elas acontecerem. 

3 pensamentos

  1. Professor Eliseu,
    Primeiramente parabéns pór trazer este assunto à tona, em meu ponto de vista é uma das grandes aberrações contábeis atuais.
    Do ponto de vista prático, nenhum investidor paga por um ativo que não existe. Poderia colocar um ponto final aqui, mas vamos lá.
    Técnicas de avaliação e as normas contábeis permitem que a grande maioria dos ativos tangíveis e intangíveis adquiridos em uma combinação de negócios seja avaliado e reconhecido. Casos exepcionais como força de trabalho não se qualificam para reconhecimento.
    O Goodwill em sua essência é a expectativa de rentabilidade futura, correto? Desta forma, qual investidor em uso pleno de suas faculdades mentais pagaria por um ativo que trouxesse benefícios futuros em decadas? Ou qual investidor pagaria por sinergias que são suas é não do vendedor do ativo?
    É comum em uma transação, o investidor/comprador ceder uma parte da mais valia da sinergia, afirmo que TODA a transação onde o Goodwiil é um percentual elevado em relação ao valor total pago, carrega um defeito, um vício ou um problema negocial em sua realização ou contabilização.
    Uma sugestão para um critério de amortização seria o paypack do investimento, ou seja, o período de retorno deste.
    Parabéns mestre.

  2. Inicialmente queria parabenizar a família Martins, especialmente ao Prof. Eliseu, pelo blog e pela iniciativa de discussões públicas de ideias construtivas sobre temas contábeis relevantes. As vezes ficamos muito presos à técnica normativa sem discutir a essência e teoria contábil….Tentando contribuir com a discussão vou pontuar alguns pontos que considero relevantes.
    Na minha visão o maior problema (maior do que amortização x impairment) é a assimetria de reconhecimento do goodwill. O não reconhecimento do goodwill gerado internamente antes de sua efetivação via transações de M&A, vendas de marcas, etc representa uma subavaliação dos ativos das empresas e tem levado investidores a tomarem decisões equivocadas, especialmente em tempos de empresas de tecnologia e start-ups que têm um imenso potencial de geração de valor. Alguns pesquisadores têm demonstrado e discutido estes efeitos – aos interessados recomendo a leitura de “Time to Change the Accounting for Intangibles Status Quo, LeV (2018)” e “ The Deteriorating Usefulness of Financial Report Information and How to Reverse It, Lev (2018)”.
    A amortização sistemática por um prazo pré definido provavelmente distorcerá o resultado da empresa e a subjetividade do teste de impairment também pode trazer consequências indesejáveis como temos visto. Tudo posto na balança deve-se avaliar o trade-off de cada opção dentro do objetivo da contabilidade de bem informar o tomador de decisão.
    Excelente desafio aos normatizadores e pesquisadores contábeis.

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